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A reconstrução dos Estados para enfrentar as principais questões atuais: combate à fome e miséria e emergência climática (Encontro paralelo do G20 Brasil)

    As Revoluções que criaram o Estado Capitalista transformaram a vida urbana, a indústria e o consumo, afastando a sociedade da natureza e devastando florestas, mecanizando o campo e poluindo água e ar. O Estado capitalista, presente na Economia Clássica e moderna, está ligado à propriedade privada e à acumulação de riquezas. Na fase mercantilista, o Estado era centralizador e poderoso. Os liberais clássicos, apesar de defenderem um Estado mínimo, mantinham-no a serviço da desigualdade entre nações e classes sociais. Os fisiocratas, como Quesnay, defendiam um Estado mínimo que taxasse apenas os proprietários rurais, deixando a indústria livre de impostos. Adam Smith, por sua vez, via o Estado como promotor da riqueza das nações, com intervenção mínima, mas essencial para segurança, justiça e obras públicas. Ricardo enfatizava a auto regulação do mercado, mas reconhecia a importância do Estado na manutenção da ordem.

    John Stuart Mill, último dos clássicos, viveu o auge do capitalismo britânico e o início das ideias socialistas. Defendia intervenções estatais em áreas como educação e saúde. Keynes, por outro lado, argumentava que o Estado deveria regular a economia para evitar crises de desemprego e instabilidade. A reunião de Bretton Woods, em 1944, inspirada nas ideias de Keynes, buscou evitar novas crises globais, propondo a criação do FMI e do dólar como moeda internacional. No entanto, crises como a de 2008 mostram que a auto regulação nunca aconteceu plenamente. Marx via o Estado moderno como uma ditadura da classe burguesa, enquanto Weber destacava seu caráter racional-legal-burocrático. Foucault introduziu o conceito de panóptico, refletindo o controle e vigilância exercidos pelo Estado moderno.

    Na década de 1960, o capitalismo central (Estados Unidos e Europa Ocidental) enfrentou uma crise devido à falta de trabalhadores para tarefas de baixa remuneração, incentivando a imigração de africanos, latinos e europeus mais pobres. Isso ocorreu junto à robotização e mecanização, além da inclusão massiva de mulheres no mercado de trabalho. Apesar da busca por lucros e eficiência, houve aumento da pobreza e criminalidade nas grandes cidades. A indústria começou a produzir globalmente em busca de mão-de-obra barata, e novos sistemas de transporte, como containers, se desenvolveram. No setor financeiro, destacou-se o crescimento dos cartões de crédito e das dívidas familiares, lucrativos para os bancos.

    Nos anos 1970, empréstimos maciços foram feitos para a América Latina e África, que enfrentaram dificuldades para pagar as dívidas, levando ao aumento das taxas de juros e ao fortalecimento do FMI. Isso resultou em regimes regulatórios mais relaxados e investimentos em ativos como ações e propriedades. A taxa de crescimento do capitalismo foi em média de 2,25% ao ano, com variações significativas ao longo das décadas. Nos anos 1970, excedentes de dólares dos países do Golfo foram aplicados na economia mundial, gerando enormes dívidas na década de 1980 e uma onda de privatizações. Empresas estatais foram entregues ao capital privado, enriquecendo empresários, como no México e na Rússia. Bancos emprestavam mais do que seus depósitos, aumentando os riscos e levando a consolidações. Nos Estados Unidos, a partir de 1980, houve desindustrialização e decadência de centros industriais, enquanto novos espaços industriais surgiram na Ásia, especialmente na China. A hegemonia financeira dos EUA enfraqueceu, mas o país ainda controla grande parte do capitalismo global.

    A Ásia, especialmente a China, adaptou-se eficientemente ao sistema capitalista. Crises no mundo capitalista avançado afetam diretamente milhões de famílias nos países pobres, que dependem de remessas de parentes no exterior. A crise de 2008 evidenciou isso, com movimentos sociais de sem-teto nos EUA ocupando prédios abandonados. O modelo capitalista de livre comércio, dominante após a Segunda Guerra Mundial, mostra-se insustentável, exigindo a construção de alternativas e uma compreensão mais profunda das crises recorrentes do capitalismo.

    Em 2015 aconteceu a reunião de Paris para tratar das mudanças climáticas. Pouco antes da conferência a NASA divulgou a instabilidade de uma geleira na Groenlândia, que possui água suficiente para elevar o nível do mar em 46 cm. Os acordos novamente não tiveram apoio dos Estados Unidos que em 2016 negaram mais uma vez a ciência das mudanças climáticas e expressaram forte oposição às políticas de mitigação e de diminuição do uso dos combustíveis fósseis. Os Republicanos evangélicos são mais radicais ainda e afirmam que a humanidade não exerce qualquer influência no aquecimento global. Além disso, bloquearam os trabalhos da Agência de Proteção Ambiental relativas às emissões de carbono. No entanto, 2/3 dos norte-americanos são favoráveis a integração dos Estados Unidos nos acordos internacionais. A maioria da população considera a questão prioridade. Existe, portanto, grande disparidade entre opinião pública e políticas. Neste caso, como afirma Chomsky, colocando o mundo em risco. Concluímos que a segurança da população nunca foi prioridade nos últimos 70 anos por parte dos formuladores das políticas.

    Diante de toda a crise atual provocada, principalmente, pelo neoliberalismo e pela falta de uma união internacional para enfrentarmos a pobreza e a emergência climática, torna-se necessário discutirmos a reconstrução do próprio Estado moderno. Como evento paralelo à reunião do G20, que vai ocorrer este ano no Rio de Janeiro, aconteceu o seminário “States of the Future” na sede do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) do Rio de Janeiro. O representante do Instituto Tecnoarte, Francisco Pontes de Miranda Ferreira, participou das palestras realizadas nos dias 22 e 23 de julho de 2024. O G20, ou Grupo dos 20, é composto pelos ministros de finanças e chefes dos bancos centrais das 19 maiores economias do mundo, além da União Africana e da União Europeia. O grupo foi estabelecido em 1999, em resposta às sucessivas crises financeiras ocorridas na década de 1990.

    O presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, abriu a reunião afirmando que o Consenso de Washington e os princípios da Escola Neoliberal de Chicago estão ultrapassados e defendeu a incapacidade do Estado mínimo para resolver os problemas sociais e ambientais atuais. O Consenso de Washington é um conjunto de dez diretrizes econômicas formuladas em 1989 por instituições financeiras internacionais para promover reformas econômicas em países em desenvolvimento, focando em disciplina fiscal, liberalização do comércio e privatização. Embora tenha sido criado para estimular o crescimento sustentável, suas recomendações têm sido amplamente debatidas e criticadas por seus impactos sociais e econômicos. Mercadante apontou algumas estratégias para a reconstrução de um Estado que possa enfrentar as crises atuais como a urgência no combate à emergência climática, com o desenvolvimento de uma agricultura descarbonizada, a descarbonização da indústria e o fim do desmatamento com a restauração de florestas como a Amazônica. “O G20 tem que trazer a agenda ambiental de forma ostensiva e decisiva”, argumentou Mercadante. Destacou a posição brasileira a favor da segurança alimentar do planeta e colocou como prioridade do BNDES a “neoindustrialização”, considerando os impactos da era digital, com ênfase na Inteligência Artificial. O presidente do BNDES também falou dos projetos de infraestrutura no país como a “Nova Dutra” – rodovia que liga Rio e São Paulo – e o fortalecimento do cooperativismo.

    Em seguida, Marcos Athias Neto, Secretário-Geral Assistente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), defendeu um mundo “mais inclusivo e sustentável”. A Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, lembrou que no mundo mais de 280 milhões de pessoas passam fome e que este fato representa uma falha grave dos Estados atuais. Ainda afirmou que os mais pobres são os que mais sofrem com a calamidade climática e, ao mesmo tempo, são os que têm menor culpa. Anielle ressaltou que povos tracionais, como os quilombolas e os indígenas, preservam a natureza. Para ela, o maior desafio dos Estados contemporâneos é a construção de uma sociedade justa e igualitária. Esther Dweck, Ministra da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, falou da importância da própria reunião, promovida pelo seu ministério, para trazer ao G20 a pauta de como deverá ser o Estado do Futuro. Argumentou a favor de um desenvolvimento “inclusivo e soberano” e disse que após a decadência do discurso neoliberal “o Estado voltou à moda”.

    A cerimônia de abertura contou também com a presença da ex-Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, ex-Diretora Executiva da ONU Mulheres e ex-presidente do Chile, Michelle Bachelet. Ela enfatizou a necessidade de construirmos um Estado que trabalhe um conjunto formado por “governo, pesquisa científica, organizações da sociedade civil e setor privado”. Descreveu a série de crises humanitárias que vivemos nos últimos tempos e que agora acrescentamos a crise climática. Disse que precisamos de postura multilaterais e que uma ou poucas nações não conseguem resolver os problemas sozinhas. Ainda falou dos desafios da Inteligência Artificial. Terminou sua fala demonstrando preocupação com os riscos provocados pela extrema direita em todo o planeta. Finalmente, a cerimônia de abertura foi contemplada pela fala de Dilma Rousseff, ex-presidente do Brasil e presidenta do Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS, sediado em Xangai, na China. Destacou o potencial, cada vez maior, do BRICS com forte influência na economia e na política global. Criticou a desindustrialização provocada pelo neoliberalismo e a necessidade de planos de desenvolvimento de médio e longo prazo por parte dos Estados. Ressaltou a necessidade de políticas inclusivas e demonstrou especial preocupação com a extrema miséria ainda presente em alguns países. Terminou destacando a nova industrialização com as tecnologias digitais e a “internet das coisas”.

    A Conferência Magna foi inaugurada por Denise Ferreira da Silva, Professora da Cadeira Samuel Rudin em Humanidades e co-diretora do Critical Racial and AntiColonial Study Co-Laboratory da New York University. Denise destacou a fase de transição que estamos vivendo em que os Estados precisam tomar uma nova direção. Resgatou a história de Estados que foram construídos a partir do colonialismo, da escravidão e do deslocamento e massacre de diversos povos. “Foram Estados comprometidos com o processo colonial”, afirmou Denise. Defendeu, portanto, uma nova “arquitetura global” que tenha como prioridade o social e não os lucros.

    A copresidente do Grupo de Peritos do Grupo de Trabalho do G20 para uma Mobilização Global contra as Mudanças Climáticas, professora na University College London, Diretora Fundadora do Instituto para Inovação e Propósito Público – IIPP, Mariana Mazzucato, argumentou a favor de necessidade de repensarmos o Estado. “Não podemos ter uma visão estática do Estado” ressaltou Mariana. Destacou a série de crises que marcam a modernidade. Mariana lembrou do importante papel que tiveram no século passado os movimentos de trabalhadores que conquistaram a diminuição das jornadas de trabalho, o fim do trabalho infantil e direitos trabalhistas em muitos países do mundo. Disse que precisamos de uma “burocracia criativa e dinâmica para reinventarmos o Estado” e colocou como prioridade o combate à pobreza e às desigualdades. Afirmou que necessitamos “redesenhar as ferramentas antigas e construir novos instrumentos”. Além disso, os Estados devem desenvolver planos de transformação ecológica, apontou Mariana. Finalmente, defendeu a revigoração dos serviços públicos. Rodrigo Rossi, Chefe da Representação da Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, Ciência e Cultura (OEI) no Brasil, enfatizou que vivenciamos uma “crise de percepção” e citou o físico e filosofo Fritjof Capra que defende uma “visão sistêmica da vida”. Rodrigo ressaltou que o Estado novo precisa dedicar-se à transição ecológica, com inclusão social, onde a educação tem um papel primordial em todos os aspectos. Ele apontou como uma das estratégias relevantes o “empreendedorismo climático para pequenos e médios negócios”.

    A conferência do dia 23 iniciou-se com a participação de Miriam Belchior, Secretária-Executiva da Casa Civil da Presidência da República e Tereza Campello, Diretora Socioambiental do BNDES. Tereza destacou que o Estado não pode apenas atuar para corrigir as falhas do mercado. Apresentou o projeto “o Arco da Restauração” que visa enfrentar o desmatamento e o crime organizado na Amazônia. O objetivo e restaurar 24 milhões de hectares de floresta e impedir o avanço da destruição. Os investimentos contam com o Fundo Amazônia e o Fundo Clima e Tereza defende o envolvimento de vários atores sociais, inclusive o setor do agronegócio. Miriam Belchior, disse que “o Estado mínimo não tem como responder aos desafios” e que estamos num momento de teste para vermos as reais capacidades do Estado. Argumentou que o modelo de Estado neoliberal não prioriza a diminuição das desigualdades e os direitos trabalhistas. “O Estado deve promover uma ação coletiva para garantir o máximo de direitos”. Miriam defende a criação de metas bem definidas de médio e longo prazos.

    Na conferência magna do dia 23, Ha-Joon Chang, Professor da Faculdade de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres (SOAS) abriu sua palestra afirmando que o Estado do Futuro precisa criar novos caminhos. Ha-Joon Chang é um renomado economista sul-coreano e conhecido por suas críticas às políticas neoliberais, Chang argumenta que os países desenvolvidos frequentemente utilizam um duplo padrão ao aconselhar políticas econômicas para o mundo em desenvolvimento, promovendo medidas que eles próprios não seguiram durante suas fases de crescimento econômico. Ele defende que os países em desenvolvimento devem ter a liberdade de experimentar diferentes estratégias econômicas, assim como os países ricos fizeram no passado. O professor desenvolveu alguns questionamentos em sua obra Kicking Away the Ladder: Development Strategy in Historical Perspective (2002). Neste estudo provocativo, Chang examina a grande pressão sobre os países em desenvolvimento por parte do mundo desenvolvido para que adotem certas ‘boas políticas’ e ‘boas instituições’, vistas hoje como necessárias para o desenvolvimento econômico. Suas conclusões são convincentes e perturbadoras: os países desenvolvidos estão tentando ‘chutar a escada’ com a qual subiram ao topo, impedindo assim que os países em desenvolvimento adotem políticas e instituições que eles próprios usaram. O professor critica o modelo adotado pelos países mais ricos que provocou desigualdades e destruição ambiental. Defende, portanto, um realinhamento geopolítico global. Lembrou que foi criado como criança diante de uma crise assustadora nos anos 1970, especialmente na Coréia do Sul e na Guerra Fria, composta pelo “medo de guerras, crise do petróleo, risco nuclear”. Ressaltou que a nossa crise atual e todas as outras não são iguais para todas as pessoas. Disse que um grande empresário japonês ou chinês, por exemplo, não enxerga qualquer tipo de crise. Países como a China tiveram crescimento econômico 80 vezes maior desde 1979 e Vietnam 18 vezes maior desde 1986, apontou. Chang afirmou que os países mais pobres sempre sofreram mais em todas as crises. Lembrou que a história do capitalismo sempre foi marcada pela substituição de pessoas por máquinas. Destacou ainda que o confronto entre Estados Unidos e China jamais poderá acontecer, na medida que 13% dos investimentos nos EUA estão na mão de chineses e que a China ocupa quarto lugar nas exportações americanas e os Estados Unidos representam o segundo lugar nas exportações chinesas. Apontou também que a pobreza atinge hoje muitos países ricos como o próprio Estados Unidos, que teve significante aumento da pobreza nos últimos anos, e o Japão. Ao mesmo tempo, países que tiveram políticas de “bem-estar” como França, Holanda, Canada e o próprio Brasil apresentaram diminuição da pobreza.

    Jose Antonio Ocampo da Universidade de Columbia, apontou as crises de 2008/2009 e a própria pandemia como sinais de crise do próprio Estado neoliberal e que precisamos de uma transição do modelo. Ressaltou a crise demográfica marcada pelos diversos processos de êxodo de populações. “Tudo leva a reinvenção do Estado”, afirmou. Ocampo destacou a crucial necessidade de investirmos nos países mais pobres com empréstimos de baixo custo. Destacou os novos agentes da economia mundial como o Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura e o Banco do Brics. “Precisamos de mais e maiores bancos de desenvolvimento multilaterais”, argumentou. Bancos que, de acordo com Ocampo, devem priorizar as questões de inclusão e climáticas. Defende um sistema global com mais voz e participação dos países em desenvolvimento.

    James Galbraith, Professor da University of Texas em Austin, relacionou as políticas neoliberais com a privatização e o aumento da disparidade entre ricos e pobres. “O custo social do neoliberalismo é insuportável”, afirmou. Além disso, disse que o neoliberalismo causou a desindustrialização, a erosão do Estado de bem-estar social e o aumento do mercado financeiro. Fatos que, segundo o professor, provocaram aumento das instabilidades. Galbraith acredita que a esperança está na multipolaridade do mundo para reduzir as desigualdades. Finalmente, o renomado Professor da Universidade de ColumbiaJeffrey Sachs, defendeu a transição decolonial. Sachs apontou na direção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, destacando o 16 e o 17 que defendem a paz e as parcerias. O professor criticou muito a política dos Estados Unidos que além de bélica, recusa o enfrentamento das questões climáticas. Além disso, Sachs disse que os Estados Unidos não financiam os projetos de combate à pobreza no mundo. Sachs arriscou afirmar que tem provas que o vírus da Covid foi fabricado para interesses norte-americanos. “Precisamos de uma reforma financeira internacional e tornar a ONU mais efetiva”, concluiu. Diante da crise atual provocada principalmente pelo neoliberalismo e pela falta de uma união internacional para enfrentar a pobreza e a emergência climática, torna-se evidente a necessidade de discutir a reconstrução do próprio Estado moderno. Como reflexo dessa urgência, o seminário “States of the Future” foi realizado na sede do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no Rio de Janeiro, em paralelo à reunião do G20 que ocorrerá este ano na mesma cidade. Este evento destacou a importância de repensar as estruturas estatais e promover uma cooperação global mais eficaz para enfrentar os desafios contemporâneos.

    Texto e fotos: Francisco Pontes de Miranda Ferreira