O município de Guapimirim, recentemente criado, emancipado de Magé em 1990, passou por significativas transformações nos últimos anos. Em 1990 a população do município era de pouco mais de 14 mil habitantes e hoje se aproxima dos 60 mil. A população urbana ultrapassou a rural neste mesmo período. No entanto, a infraestrutura de saneamento obteve muito poucos investimentos, principalmente referentes ao abastecimento de água e ao serviço de esgotamento sanitário que é inexistente. Recentemente, a cidade passou por uma grave crise hídrica e muitas residências e parte do comércio ficaram sem abastecimento de água, ou com abastecimento muito precário, durante vários dias.
A principal causa foi a estiagem prolongada que atingiu grande parte do país. Foram mais de 140 dias com pouquíssima chuva e rios como o Soberbo, que abastece a cidade, nunca foram vistos com nível tão baixo de água. A concessionária, Fontes da Serra, pertencente ao grupo “Emissão”, é responsável pelo abastecimento de água e possui um contrato de 2000 que termina em 2031. O próprio contrato previa um crescimento populacional anual e o Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB) prevê investimentos para a estrutura de abastecimento de água e para outras áreas do saneamento. No entanto, muito pouco foi realizado.
No passado havia um sistema precário de abastecimento com tubos de amianto e sem qualquer forma de tratamento. Hoje o município conta com um reservatório, uma Estação de Tratamento de Água (ETA) e uma ampla rede de distribuição com hidrômetros instalados nos estabelecimentos atendidos. O sistema da Barreira possui capacidade de 120 Litros de água por segundo (20 l/s) em períodos normais. “Nossa responsabilidade é o tratamento, a administração do sistema e a distribuição. O mobiliário (instalações) todo pertence ao município”, explicou o gerente operacional da empresa Fontes da Serra, Daniel Benevides. Daniel disse que um reservatório para abastecimento público de água, diferente das caixas de água residenciais, não tem como principal objetivo reservar água, mas sim possibilitar a pressão necessária para o abastecimento. Portanto, “a prioridade é a instalação de novos pontos de captação e não a construção de novos reservatórios, embora haja previsão também disso”, afirmou Daniel. De acordo com Daniel e o administrador operacional, Rafael Gomes da Silva, em 2015 já tinha sido anunciado à necessidade de novos pontos de captação e de novos reservatórios. No entanto, “não houve reajuste de tarifas desde 2015 e a impossibilidade da realização de investimentos”, enfatizaram Daniel e Rafael. Hoje o sistema de abastecimento do município atende 80% da população urbana, o que representa 13.522 ligações e 40.566 mil habitantes.
Os investimentos para a ampliação do sistema de captação e a construção de novos reservatórios, visando à pressurização e a extensão da rede, não cabem à concessionária e sim ao município, de acordo com o contrato de concessão. “O que pode ser feito é um prolongamento do tempo de concessão ou um aporte de recursos por parte do poder público municipal para que os investimentos sejam realizados pela concessionária. A prefeitura tem muitos canais para buscar recursos”, argumentou Daniel. Os municípios podem buscar recursos para investimentos em saneamento (água, esgoto, resíduos sólidos e drenagem urbana) em instituições como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Ministério das Cidades, os recursos disponíveis da venda de áreas antes atendidas pela Companhia Estadual de Águas e Esgoto do Rio de Janeiro (CEDAE) para a iniciativa privada e muitas outras fontes.
Alguns dos investimentos previstos no Plano Municipal de Saneamento são as construções de mais dois reservatórios e mais uma ETA, além de novas elevatórias. Uma captação de 50 litros por segundo está prevista para o rio Iconha para atender 5918 novas ligações. O objetivo é unificar o abastecimento atual da Barreira com o do Iconha. Além disso, há previsão de abastecimento por poços artesianos em bairros como Vargem Alegre e Vila Olímpia com 6187 novas ligações. “Precisamos de maior diálogo entre concessionária, prefeitura e sociedade para encontrarmos soluções. É de interesse da empresa Fontes da Serra, investir no setor, assim como realizar o esgotamento sanitário e o serviço de coleta e destinação dos resíduos sólidos”, ressaltou Daniel. O marco previsto no Brasil para 2033 é que todos os municípios tenham 94% da população com abastecimentos de água e 90% com esgotamento sanitário. Para atingirmos esta meta, precisamos urgentemente de investimentos.
Na situação emergencial que atingiu o município no inverno e início da primavera de 2024, a prefeitura agiu e providenciou carros pipa próprios e alugados para abastecer residências, mas a situação com novos períodos de estiagens prolongadas faz parte das previsões dos cientistas, desde que foram cientificamente confirmadas as mudanças climáticas e amplamente difundidas na Rio 92. Cabe agora a esperada mobilização de todos os setores.
O Contrato
O Edital N° 001/99 de Licitação Pública por Concorrência foi elaborado para a concessão do serviço de abastecimento de água até então operado pela prefeitura. O documento afirma que a água captada no rio Soberbo, antes da concessão, era então distribuída sem nenhum tipo de tratamento e que a rede era altamente precária, com muitos vazamentos. Além disso, o sistema atendia cerca de 50% da população urbana. O objeto do Edital era a seleção de empresa para executar as seguintes ações: captação, adução, produção, operação, conservação, manutenção, modernização, ampliação e cobrança do serviço de abastecimento de água. Despesas com estudos, execução de obras, operação são responsabilidade da empresa. O prazo da concessão é de 30 anos e qualquer prolongamento envolve como justificativa uma “excepcional dificuldade”. Ao longo da concessão a empresa deve “apresentar propostas de melhorias operacionais, bem como intervenções necessárias a ampliação e modernização dos serviços de abastecimento ao longo da concessão”. A Tarifa Referencial de Água (TRA) inicialmente apresentada foi de R$ 0,439793 por metro cúbico (m3) de água. O item com pontuação máxima no documento foi justamente estabelecido para a “proposição de melhorias operacionais, incluindo intervenções necessárias para a adequação e modernização dos serviços de abastecimento de água”. Quanto ao reajuste de tarifa, o contrato afirma que “sempre que ocorrerem motivos técnicos, econômicos, financeiros, tributários, conjunturais, jurídicos e outros, que possam comprometer a cobertura dos investimentos, dos custos operacionais e de manutenção, afetando o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, a TRA deverá ser reavaliada e reajustada”. Os reajustes anuais devem obedecer ao IGP-M (Índice Geral de Preços- Mercado calculado pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Até o final da concessão (2030) a empresa deverá atender 90% da população urbana com abastecimento de água. De acordo com Edital, a população prevista para 2030 é de 52.648 habitantes. O Edital possui uma descrição do sistema que foi construído pela prefeitura entre 1982 e 1984 que constava de uma barragem, um canal de captação, uma adutora de água bruta, reservatório e rede de distribuição. O manancial sendo localizado dentro do Parque Nacional da Serra dos Órgãos. Como dito antes, sem qualquer tipo de tratamento e com uma rede muito precária. Algumas das principais obras e melhorias previstas para empresa no Edital durante o período de concessão são:
- Construção de nova captação no rio Soberbo;
- Construção de adutora;
- Reforma do reservatório existente;
- Substituição da rede num total de 165.600 m de tubulação PVC-PBA.
Plano Municipal de Saneamento Básico de Guapimirim
O Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB) está em fase de revisão e um novo documento foi entregue em 2024. O PMSB aborda os quatro setores do saneamento: abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem urbana e manejo dos resíduos sólidos. O PMSB afirma que o município enfrenta desafios relacionados às estiagens e a dependência de um único manancial é apontada como uma problemática importante. Propõe a busca por novos mananciais, a modernização da infraestrutura de captação e a criação de sistemas de reuso de água para garantir a segurança hídrica. O documento de revisão do PMSB ressalta a própria estiagem prolongada e a falta de água de 2024, durante o término de sua elaboração. O documento ainda fala de um reajuste da tarifa em 2024 da TRA para R$ 1,3044. “No entanto, este reajuste foi apenas efetuado em 2015 com data base de referência 2012”, informou Daniel. O sistema tarifário varia de acordo com o setor da sociedade e a faixa de consumo: residencial, comercial e industrial e o tamanho do imóvel.
Prefeitura
A equipe do Instituto Tecnoarte procurou a Assessoria de Comunicação (ASCOM) do município com o objetivo de ouvirmos um representante da Prefeitura Municipal de Guapimirim sobre o assunto. A ASCOM, por sua vez, depois de vários dias, recomendou falarmos com a Procuradoria. Insistimos durante várias semanas com a ASCOM e com a procuradoria e não obtivemos resposta.
Saneamento: princípios e normas
No Brasil 35 milhões de pessoas não possuem água tratada em suas residências e cerca de 50% da população não tem coleta de esgoto. Segundo os mesmos dados do Instituto Trata Brasil (ITB) (O Globo 1/3/2020), investimentos de R$1,12 trilhões seriam necessários para atingirmos a chamada universalização do saneamento, até dezembro de 2033. Em 2018, os investimentos no setor ficaram R$ 14,5 bilhões abaixo da meta. Neste mesmo ano, o afastamento do trabalho, divido a doenças relacionadas à falta de saneamento, custou R$ 18,08 bilhões ao país. Doenças extremamente comuns como diarreia e dengue estão diretamente ligadas com saneamento básico e em 2018 foram 233.880 internações hospitalares com doenças de veiculação hídrica, com um custo de R$ 90,21 milhões (ITB) (O Globo 1/3/2020).
O Brasil no quesito de saneamento básico está atrás da Bolívia, Chile, Peru e África do Sul (O Globo 1/3/2020). O saneamento é uma das políticas públicas com maiores desigualdades do Brasil, fato visível quando analisamos os territórios de Guapimirim. Estudos do ITB (O Globo 1/3/2020) destacam que os trabalhadores que vivem em áreas sem saneamento básico possuem salários e nível de educação bem mais baixos. A escolaridade média de quem tem acesso ao saneamento básico é de 9,73 anos em contraste com a de 5,63 anos de quem não tem estes serviços (O Globo 1/3/2020). Segundo o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) a nota média dos alunos com banheiro em casa é de 531 pontos e as dos sem banheiro de 484 pontos (O Globo 1/3/2020). Segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), das 181 mil escolas de ensino básico do Brasil, 16% não têm banheiro, 26% não possuem água encanada e 49% não têm ligação à rede de esgoto (O Globo 1/3/2020). Assim evidenciamos esta desigualdade ao analisarmos a realidade de várias comunidades de Guapimirim, locais em que isto está refletido diretamente no território. Assim encontramos comunidades em que os riscos ambientais são extremos como deslizamentos e inundações, os serviços básicos são insuficientes e o nível de emprego, renda e escolaridade bem inferior das áreas mais elitizadas.
De acordo com a UNICEF (2004), 1,1 bilhão de pessoas no mundo não possui abastecimento adequado de água e 2,6 bilhões, acesso ao saneamento adequado. Cerca de 6 mil crianças morrem diariamente por doenças associadas à água e saneamento. Para enfrentarmos esses problemas temos alguns desafios urgentes:
- Diminuir as desigualdades sociais e as injustiças socioambientais;
- Garantir qualidade de água com sistemas de distribuição adequados;
- Reduzir as possibilidades de escassez de água;
- Desenvolver sistemas de irrigação eficientes;
- Implantar tecnologias alternativas, mais baratas e simples para o tratamento dos efluentes e resíduos.
Os fundamentos da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) (Lei 9.433/1997) afirmam no Artigo 1 que a água é um bem de domínio público, um Recurso Natural limitado e dotado de valor econômico. Em situação de escassez o uso prioritário dos Recursos Hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais. A gestão dos Recursos Hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas e a bacia hidrográfica é a unidade territorial para a implantação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. De acordo com a lei, a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos Usuários e das Comunidades. O Artigo 2° da Lei dos Recursos Hídricos define alguns objetivos da PNRH como:
Assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água em padrões de qualidade adequadas aos respectivos usos; a utilização racional e integrada dos Recursos Hídricos, incluindo o transporte aquaviário, com vistas ao desenvolvimento sustentável; a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem natural ou decorrentes do uso inadequado dos Recursos Naturais e a preocupação com as gerações futuras contempla o Pacto Inter geracional ou de equidade (PNHR, 1997).
É importante também a preservação de catástrofes naturais e provocadas, exigindo a cautela na utilização dos Recursos Hídricos como a manutenção da vegetação das matas ciliares e encostas. Além disso, as Diretrizes Gerais da Lei 9.433/1997 afirmam que deve acontecer a:
Adequação da gestão de Recursos Hídricos às diversidades físicas, bióticas, demográficas, econômicas, sociais e culturais das diversas regiões do país e a integração da gestão de Recursos Hídricos com a gestão ambienta (PNRH, 1997).
Fundamento extremamente importante da PNRH é a gestão descentralizada dos Recursos Hídricos de forma tripartite: Poder Público, Comunidades e Usuários. Atendendo assim ao princípio de participação comunitária ou cidadã que foi inspirado na Declaração de Dublin – Conferência Internacional sobre Água e Meio Ambiente da ONU (1992) – preparação para a Rio 92. Essa importante conferência definiu alguns princípios como a afirmação de que a “água doce é um recurso finito e vulnerável, essencial para a conservação da vida, a manutenção do desenvolvimento e do meio ambiente”. A reunião de Dublin ainda aponta que “o desenvolvimento e a gestão da água devem ser baseados em participação dos usuários, dos planejadores e dos decisores políticos em todos os níveis” e que as mulheres devem assumir papel essencial na conservação e gestão das águas.
A Agenda 21 (Rio 92) no Capítulo 18 ainda destaca como princípio: “assegurar água de boa qualidade para todos os habitantes, mantendo as funções hidrológicas, biológicas e químicas dos ecossistemas, adaptando as atividades humanas aos limites da natureza e lutando para combater as moléstias ligadas à água”.
No final de 2019, a Câmara dos Deputados de Brasília apresentou o novo marco regulatório para o saneamento básico no Brasil. A grande diferença da nova política é a abertura do setor para a iniciativa privada. O objetivo geral é atingir a chamada universalização até 2033, que significa 94% da população com acesso à água potável e 90% com coleta e tratamento de esgoto.
Temos as políticas estaduais de saneamento básico que definem a autonomia dos municípios quanto à organização e a prestação de serviços de saneamento, seguindo as normas Federais. Políticas que também ressaltam a participação da sociedade organizada em todos os quesitos que envolvem o saneamento. Cabe, portanto, ao Estado e aos municípios buscarem permanentemente a melhoria da qualidade de prestação de serviços de saneamento em constante diálogo com a população. O Plano Estadual de Saneamento do Rio de Janeiro, por sua vez, estabelece programas, projetos e metas, assim como coordenação de recursos, humanos, tecnológicos e financeiros para todo o território. Temos também o Plano Metropolitano de Saneamento Básico do Rio de Janeiro que atinge toda a Região Metropolitana, incluindo Guapimirim. O PMSB tem como uma das principais tarefas revisar e atualizar os serviços de captação, tratamento e distribuição de água. Elementos que devem servir de base para o planejamento municipal e a previsão dos investimentos.
Criação de empresa pública municipal é tendência mundial
Mais de 1600 cidades do mundo municipalizaram os serviços públicos, com controle popular das empresas. Os principais setores onde isso acontece são água e esgoto, resíduos sólidos, energia e transporte. Apesar da mídia e de muitos políticos afirmarem que os serviços públicos são caros, exigem uma administração complexa e que os municípios não têm capacidade de gerirem as empresas e que por estes motivos devem ser entregues à iniciativa privada, experiências em vários cantos do mundo comprovam justamente o oposto. Pesquisas revelam 835 casos de (re)municipalização de serviços em mais de 1600 cidades em 45 países. Em praticamente todos os casos houve redução das tarifas, melhorias nas condições de trabalho e aumento da qualidade dos serviços, além de maior transparência e responsabilidade (KISHIMOTO; PETITJEAN, 2017).
Vários casos apontados pelos autores envolvem posse pública da empresa com gestão dos cidadãos e trabalhadores. No setor de água e esgoto aconteceram 235 casos de municipalização dos serviços atingindo mais de 100 milhões de pessoas. Entre 2000-2008 foram 17% dos casos e entre 2009 e 2027 83%, demonstrando o aumento da tendência. Cidades francesas como Paris, Montpellier, Nice, Rennes e Grenoble municipalizaram serviços de água e esgoto. Cidades como Montpellier criaram, além da empresa municipalizada, um observatório das águas de participação popular. No setor dos resíduos sólidos uma característica importante e diferente tem sido o destaque dado para às campanhas de redução do consumo e de desenvolvimento da transição agroecológica, pouco presentes nas iniciativas privadas que têm interesse na sociedade consumista e nos investimentos nas usinas de reciclagem e de incineração. Temos alguns exemplos de práticas que dão certo em várias partes do mundo como as tecnologias sociais, os observatórios das águas com participação popular, a transição agroecológica, o reconhecimento dos técnicos e especialistas locais.
Referências:
BRASIL (MMA) Agenda 21 Global, 1992.
BRASIL, Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) (Lei 9.433), 1997.
PETITJEAN, O Remunicipalization in France: From addressing corporate abuse to reinventing democratic, sustainable local public services: In: KISHIMOTO, S.; PETITJEAN, O. (Orgs.). Reclaiming public services: how cities are turning back privatisation. Amsterdam and Paris: Creative Commons Attribution, 2017. p. 24-33.
Texto de Francisco Pontes de Miranda Ferreira
Fotos cedidas pela empresa “Fontes da Serra”