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Do Heartland à Multipolaridade: A Nova Cartografia do Poder Global


    A ascensão de potências revisionistas, a desdolarização do comércio global e a reconfiguração geopolítica da Eurásia são os pilares de uma nova ordem mundial. Neste artigo, Francisco Pontes de Miranda Ferreira revisita a teoria clássica de Halford Mackinder para analisar como o controle territorial e a transformação econômica convergem para moldar um século XXI marcado por disputas entre blocos estratégicos. Uma leitura essencial para compreender o mundo em transição.

    Relações entre a Geopolítica de Mackinder e a Contemporânea e Construção de um Mundo Multipolar

    Francisco Pontes de Miranda Ferreira[i]

    A Teoria do Heartland: Geopolítica Clássica em Renascimento

    A reconfiguração da ordem global no século XXI é analisada através de duas dimensões interligadas: a geopolítica clássica, revisitada pela teoria do Heartland de Halford Mackinder, e a transformação do sistema econômico-financeiro internacional. Este estudo examina como a ascensão de potências revisionistas – notadamente China e Rússia – e a erosão progressiva da hegemonia dos Estados Unidos convergem para promover um mundo multipolar, onde o controle territorial estratégico e a desdolarização do comércio global surgem como eixos centrais de disputa pelo poder. 

    Infraestrutura e influência: a China consolida o Heartland por meio da Nova Rota da Seda.

    A teoria geopolítica de Halford Mackinder sobre o Heartland – a região central da Eurásia – ganha renovada relevância no contexto atual de transformação global. Segundo Mackinder, quem controla essa “fortaleza terrestre” dominaria a Ilha Mundial (Eurásia + África) e, consequentemente, o mundo. Hoje, essa previsão materializa-se na estratégia de potências como a China, que através da Nova Rota da Seda busca consolidar seu controle econômico e infraestrutural sobre a região e da Rússia, que, sob o comando de Vladimir Putin, reforça sua presença no Heartland enquanto expande influência para o Pacífico e Sudeste Asiático. Essa expansão desafia diretamente a hegemonia ocidental, levando a OTAN e a UE a adotarem políticas de contenção, como a expansão para o Leste Europeu e a busca por autonomia energética.

    Paralelamente, a ordem económica liderada pelos EUA – sustentada pelo dólar como moeda de reserva global e por seu poderio militar – enfrenta ameaças estruturais. A ascensão da China como potência industrial líder, a perda de participação dos EUA na produção global e a iniciativa de países do BRICS em criar sistemas financeiros alternativos (como o CIPS chinês e o PIX brasileiro) representam um desafio direto ao sistema dolarizado. Uma transição para moedas alternativas no comércio de commodities e energia reduziria drasticamente a demanda global pelo dólar, minando o poder económico e coercivo dos EUA. A convergência entre a erosão do poder norte-americano e a ascensão de potências revisionistas como Rússia e China está a reconfigurar a ordem global, transferindo o poder de um modelo unipolar para um confronto estratégico entre blocos, no qual o controle do Heartland e a desdolarização são eixos centrais dessa nova disputa pelo poder global.

    A Desdolarização e os Sistemas Financeiros Alternativos

    A hegemonia global dos EUA, sustentada pelo dólar como moeda de reserva internacional e seu poderio militar, é contestada pela ascensão da China como potência industrial líder e pela iniciativa de países do BRICS em criar sistemas financeiros alternativos, como o CIPS e o PIX. Uma transição para moedas alternativas no comércio global de commodities minaria a demanda pelo dólar, reduzindo drasticamente o poder económico e a capacidade coerciva dos EUA, além de dificultar o financiamento de sua dívida pública.

    A desdolarização como ferramenta de contestação à hegemonia econômica dos EUA.

    A economia americana, agora mais voltada para ativos intangíveis como tecnologia e finanças, mantém sua influência global principalmente através da hegemonia do dólar como moeda de reserva internacional e de seu poderio militar, com centenas de bases ao redor do mundo. No entanto, essa hegemonia é ameaçada pela ascensão de potências como os países do BRICS, que buscam criar sistemas financeiros alternativos para suas transações, como o CIPS chinês e o PIX brasileiro. Uma mudança para moedas alternativas no comércio de commodities e energia reduziria drasticamente a demanda global pelo dólar, minando o poder econômico e a capacidade de os EUA aplicarem sanções, além de abalar sua economia ao dificultar o financiamento de sua dívida e o controle sobre os fluxos financeiros globais.

    A convergência dessas duas tendências – a erosão do poder económico dos EUA e a ascensão de potências revisionistas como a Rússia de Putin – forma o eixo central de um novo mundo multipolar. A estratégia de Putin de desafiar a hegemonia ocidental alinha-se perfeitamente com os esforços do BRICS para criar um sistema financeiro alternativo, tornando-se parceiros na restruturação da ordem global, onde o poder é redistribuído do domínio unipolar dos EUA para um confronto estratégico entre blocos.

    Vladimir Putin emergiu do colapso da União Soviética como uma figura central na reconstrução da Rússia, utilizando métodos autoritários para recentralizar o poder e restaurar a soberania e o estatuto de potência do país. Mais do que um simples tirano, Putin personifica o regresso da geopolítica das grandes potências, desafiando a hegemonia ocidental e reafirmando a força, o território e a guerra como variáveis incontornáveis na ordem internacional. A sua liderança, inserida na aliança estratégica com a China, simboliza a passagem para um século XXI definido menos por consensos e mais por choques abertos de poder entre blocos, redesenhando radicalmente as alianças e fronteiras globais.

    A transição para um paradigma multipolar evidencia a intrínseca relação entre geopolítica e economia. A materialização da teoria de Mackinder na expansão eurasiática liderada por China e Rússia, aliada aos esforços do BRICS para criar alternativas ao sistema dolarizado, não apenas fragiliza a hegemonia norte-americana, mas redefine os mecanismos de influência global. Assim, o século XXI será moldado não por consensos, mas por choques entre blocos estratégicos, onde o domínio do Heartland e a autonomia financeira determinarão a nova cartografia do poder internacional.


    A análise de Francisco Pontes de Miranda Ferreira revela que a teoria de Mackinder não apenas ressurge, mas se materializa na prática geopolítica contemporânea. A disputa pelo Heartland e a transição para sistemas financeiros alternativos são os motores de uma nova ordem mundial, onde o poder não será mais definido por consensos, mas por confrontos estratégicos entre blocos. O século XXI está sendo redesenhado — e compreender essa cartografia é essencial para navegar o futuro.

    [i] Francisco é Doutor em Ciências do Meio Ambiente e Diretor de Relações Interinstitucionais do Instituto Tecnoarte