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Economia Solidária e Territorialidades Socioambientais: Tecendo Redes de Resistência e Futuro

    Francisco Pontes de Miranda Ferreira[i]

    A Economia Solidária (ES) emerge como um projeto civilizatório que reconecta produção, território e vida, deslocando o lucro individual para o bem-estar coletivo. Inspirada em Karl Polanyi – para quem a economia deve estar “embutida nas relações sociais” – e na teoria da dádiva de Marcel Mauss, ela redesenha as relações entre humanos e natureza, materializando-se em territorialidades socioambientais que desafiam a lógica predatória do capital. Reconhecida no Brasil pela Lei 13.928/2019 (PNES), a ES opera sob cinco eixos irredutíveis: cooperação como antídoto à competição, justiça socioambiental, moedas como ferramentas de soberania, cadeias curtas e rastreabilidade, e indicadores de riqueza não financeiros.

    Coletivos autogestionários (cooperativas, associações) substituem hierarquias por decisões horizontais (“um membro, um voto”), enquanto preços justos internalizam custos humanos e ecológicos, como nas feiras agroecológicas que ligam agricultores e consumidores sem intermediários. Moedas sociais (Palmas/CE, Mumbuca/RJ) circulam em circuitos locais, lastreadas em trabalho real e não na especulação, com câmbio solidário (ex.: 1 Palma = R$1 fixo) impedindo acumulação privada. O comércio justo encurta distâncias geográficas e simbólicas – como na Rede Justa Trama, que produz algodão orgânico até roupas sob gestão coletiva –, e ganhos medem-se em redução de desigualdades, preservação ambiental e fortalecimento cultural, como nas trocas de sementes crioulas. 

    As práticas da ES materializam-se em territorialidades específicas, onde espaço geográfico e organização social se fundem. Em territórios de autogestão e reciclagem, cooperativas de catadores (como o MNCR) transformam sucata em matéria-prima para micro-usinas de aço reciclado. Redes descentralizadas substituem siderúrgicas gigantes: uma cidade coleta resíduos; outra funde metais em fornos elétricos verdes; uma terceira produz ferramentas para agricultura familiar. Essa territorialidade converte áreas degradadas em polos de economia circular, reduzindo emissões de CO₂ em até 80% (FAO, 2023). Em territórios energéticos democráticos, cooperativas de energia solar (ex.: Coober/MG) desafiam usinas centralizadas. Seus parques fotovoltaicos em terras comunitárias criam autossuficiência local, com moedas sociais lastreadas em kWh (ex.: Maricá/RJ), e soberania energética para comunidades rurais desconectadas da rede nacional. Já os territórios alimentares agroecológicos, como a Rede Bela Vista (PR) – que articula 10 municípios em sistemas cooperados –, mostram rastreabilidade ética (selos WFTO atestam origem sem exploração) e resiliência: durante a pandemia, garantiram alimentos onde o agronegócio falhou (FBES, 2021). 

    A ES não se enclausura no local – conecta-o em redes globais. Mercados comuns operam sem especulação: moedas-ponte como o SUCRE no Mercosul Solidário equiparam 1 unidade a uma cesta básica regional, eliminando flutuações cambiais, enquanto bancos de tempo transfronteiriços permitem trocas como 10h de consultoria agrícola do MST por 10h de manutenção de turbinas eólicas na Alemanha.

    Plataformas cooperativas como Fairmondo (Alemanha) e Fairbnb desafiam Amazon e Airbnb com algoritmos transparentes, taxas justas e selo ESS Global para certificação ética. O complexo de Mondragon (Espanha), com 81 mil trabalhadores em 31 países, prova que escala não exige hierarquia: salários são limitados a 5x o mínimo, investimentos decididos em assembleias, e 1% do lucro vai para um fundo de inovação comunitária. 

    A viabilidade da ES frente às crises contemporâneas reside em sua capacidade de resposta multidimensional. Enquanto o capitalismo gera 45% da riqueza global concentrada no 1% (OIT, 2023), a ES oferece circuitos curtos que combatem inflação, e criam autogestão que gera emprego digno (cooperativas de reciclagem absorvem 90% mais que empresas formais), agroecologia que reduz emissões em 40%, e soberania alimentar.

    Seu planejamento de longo prazo, construído em redes federadas como a RIPESS, não replica o modelo chinês – centralizado e hierárquico –, mas opera por pactos comunitários e plataformas de gestão compartilhada. Como sintetiza Paul Singer: “Enquanto o capitalismo privatiza ganhos e socializa perdas, a economia solidária socializa soluções”. 

    Referências

    DALLA COSTA, A. Cooperativismo digital: a plataformização cooperativista. São Paulo: Elefante, 2021. 

    GAIGER, L. I. A economia solidária diante do modo de produção capitalista. Serviço Social & Sociedade, n. 123, p. 415-437, 2015.

    MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. 

    In: ______. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Ubu, 2017. p. 183-314.

    POLANYI, K. A grande transformação: as origens da nossa época. 

    2. ed. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2000.

    SACHS, I. Desenvolvimento includente, sustentável, sustentado. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.

    SANTOS, B. de S. (Org.). Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez, 2006. 

    SINGER, P. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.

    WHYTE, W. F.; WHYTE, K. K. Mondragon: uma experiência única de autogestão. São Paulo: Brasiliense, 1991. 

    RIPESS. Construindo uma economia social e solidária: nossa visão comum. 2017. 

    FAO. Sistemas alimentares solidários e redução de emissões. Relatório Técnico, 2023.


    [i] Francisco é doutor e pós-doutor em Ciências do Meio Ambiente e Diretor de Relações Interinstitucionais do Instituto Tecnoarte.