Por Francisco Pontes de Miranda Ferreira
A força das instituições como base da democracia
A solidez de uma nação não se mede apenas por seu crescimento econômico ou por suas obras de infraestrutura, mas, sobretudo, pela força de suas instituições e pelo compromisso irrestrito com a ética e a transparência. A separação harmônica e independente entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário constitui alicerce incontornável do Estado Democrático de Direito, conforme preconizado por Montesquieu ainda no século XVIII.
Esse equilíbrio de forças, longe de representar uma disputa estéril, é garantia fundamental contra a tirania e a arbitrariedade, assegurando que a vontade da lei – expressão última da soberania popular – prevaleça sobre interesses individuais ou de grupos.
A PEC da Blindagem: privilégio versus República

Em um momento crucial para a consolidação democrática brasileira, onde os pilares da transparência e da igualdade perante a lei são postos à prova, a recente tentativa de se instituir uma “blindagem” jurídica para autoridades por meio de uma PEC revela mais do que um mero debate legal: expõe a tensão permanente entre o privilégio e a República.
Ao pretender criar um regime de exceção para uma parcela do poder, a proposta afronta o Artigo 5º da Constituição – que consagra a isonomia como cláusula pétrea – e simboliza um perigoso retrocesso na luta por um Estado verdadeiramente democrático. A resistência a tal medida é técnica, moral e política, reafirmando que a saúde de uma democracia se mede pela recusa inflexível à impunidade institucionalizada.
Transparência como imperativo ético
A transparência não é uma opção de gestão, mas um imperativo ético inegociável. É ela que permite o escrutínio público, fortalece a confiança social e assegura que os agentes permaneçam a serviço do povo. O voto aberto em plenário é a materialização do direito do cidadão de saber como seu representante decide em seu nome.
Ocultar tais decisões sob o manto do segredo é subtrair da democracia seu elemento vital: a publicidade. Como lembra Dworkin (2003), a integridade do sistema jurídico depende da percepção de justiça por parte da comunidade — percepção esta que se esvai na penumbra.
A ameaça da impunidade institucionalizada
A PEC da Blindagem, sob o argumento falacioso de proteger contra “perseguições políticas”, visava criar um escudo processual para autoridades, dificultando ou impedindo investigações por crimes comuns. Tal iniciativa configurava um gravíssimo retrocesso civilizatório, instituindo um privilégio odioso oposto ao princípio da isonomia.
O Artigo 5º da Constituição Federal de 1988 consagra que “todos são iguais perante a lei”. A proposta, ao estabelecer um regime jurídico diferenciado para uma casta de agentes públicos, rasgaria essa cláusula pétrea. Como ensina José Afonso da Silva (2017), cláusulas pétreas existem para proteger a essência da Constituição contra investidas que visam solapar seu núcleo intangível.
A defesa da legalidade e da justiça republicana
A ideia de que autoridades possam estar imunes à responsabilização por atos ilícitos comuns é incompatível com um regime republicano. A história jurídica e política demonstra que a impunidade para os poderosos é o fermento da corrupção, do abuso de poder e da erosão da fé nas instituições.
A PEC transformaria o foro por prerrogativa de função em um salvo-conduto para a criminalidade, criando, nas palavras de Ferrajoli (2002), uma “zona de não-direito” dentro do próprio Estado.
O papel do Senado e o alerta democrático
A posição firme do Senado Federal, ao recusar a proposta, foi um ato de resistência democrática. O Senado agiu como contrapeso necessário, freando uma iniciativa que mancharia a imagem do Brasil. Foi a vitória da razão de Estado sobre a razão de facção.
É preocupante que uma proposta dessa natureza tenha chegado à pauta legislativa. Defender a “blindagem” é compactuar com a cultura do privilégio e da impunidade. A resposta adequada a eventuais abusos judiciais deve ser o aperfeiçoamento das garantias processuais para todos — nunca a criação de muros de proteção para uma minoria.
Transparência como condição de governabilidade
A transparência total nos três Poderes é condição de possibilidade da governabilidade. O cidadão tem o direito de saber como seus impostos são gastos, como as leis são votadas e como a justiça é administrada. O voto secreto em decisões públicas é uma afronta a esse direito.
Projetos como a PEC da Blindagem envenenam o tecido social, normalizando a desigualdade perante a lei e enviando a mensagem de que o poder confere imunidade. A vigilância cívica deve ser constante. A defesa da Constituição, da ética e da transparência é tarefa de toda a sociedade.
Educação e informação como resistência política
A batalha pela democracia e pela justiça social se trava nas salas de aula, nas bibliotecas e no acesso à informação de qualidade. A educação emancipadora e a informação transparente são os antídotos contra a opressão e o arbítrio.
Um cidadão educado é capaz de decifrar discursos vazios, reconhecer projetos de poder dissimulados e identificar representantes legítimos. A ignorância é o terreno fértil onde florescem blindagens ilegítimas e leis que perpetuam privilégios.
Defender a educação pública e laica, e lutar por uma mídia livre e plural, é um ato de resistência política. Somente um povo que conhece seus direitos e sua história estará apto a exigir que a lei sirva a todos — sem exceção.
“A pior das injustiças é aquela travestida de legalidade, e só a consciência crítica coletiva pode desmascará-la.” — Pontes de Miranda
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 40. ed. São Paulo: Malheiros, 2017.