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Ideário do Alimento Mateiro Ecológico

    “Se você não planta o que quer – vai colher o que não quer” Ernest Götsch.

    Atividades físicas ao ar livre, como caminhadas, pesca, mergulho, canoagem, escaladas, ciclismo, de forma geral são extenuantes fisicamente e geram elevada demanda energética. Práticas frequentes e/ou em dias seguidos destas atividades outdoor, requerem alimentação apropriada em quantia, diversidade (variação de nutrientes) e qualidade de itens, de maneira que a resistência física se mantenha e mais, que benefícios de saúde e condicionamento sejam gerados.

    Para o praticante, negligenciar quantidade e qualidade de alimentos pode resultar em danos para a saúde e/ou situações de risco, intoxicações, desatenção, desmaios, câimbras, tonturas e pior, ainda mais sério, caso a pessoa se perca, e/ou se acidente, estando mal alimentada ou sem algum alimento de boa qualidade de reserva na mochila, pode haver risco de vida.

    Recomenda-se para a prática de atividades outdoor, ir a campo somente em boas condições de saúde, ou seja, é necessário estar bem alimentado e descansado, de forma que a coordenação motora, o equilíbrio, os sentidos e o raciocínio funcionem bem o suficiente para evitar acidentes e gerem bons resultados, como uma boa pedalada, boa pescaria, com benefícios para a saúde do praticante. (1)

    Antes que seja um fardo, em termos de preparação e acondicionamento na mochila, a comida de campo é um motivo de relaxamento e prazer. Muitas vezes, refeições em campo são importantes momentos de interação familiar ou entre amigos. O momento de descanso em que se ‘enche o tanque’, durante atividades prediletas, nas possíveis (quando possíveis) ‘escapadas’ do trabalho e da rotina diária.

    Para o esportista é importante ‘curtir o momento’, apreciar e receber os benefícios das práticas ao ar livre. Um lanche tendo a vista de uma cadeia de montanhas, um almoço às margens de areia e pedras de um rio cristalino, jantares sob um céu estrelado, ao lado de amigos ao redor da fogueira, após boas horas de empenho físico durante o dia. Estes são momentos desejados, dignos de planos, para que um simples esquecimento não estrague tudo, para todos Algo como, descobrir que o café não veio, ou sal, ou o couscous marroquino, base da refeição de um dos ‘suados almojantares’, os quais se levam nas costas – nas mochilas, por trilhas e escarpas íngremes de solo pedregoso e lama…

    Para o esportista experiente, os detalhes são importantes e alimentação não é um mero detalhe. Ele pratica sua atividade dileta para adquirir experiências memoráveis e não quer prejudicar seus escassos momentos de conexão à natureza com esquecimentos e erros técnicos, especialmente no que tange à alimentação.

    Guias experientes planejam com cuidado o cardápio da empreitada, os itens alimentares e utensílios necessários, para compor cada refeição. Bons campistas podem tirar tomates maduros e ovos intactos no terceiro dia de trechos duros de trilha. O cardápio de um guia ou excursionista é indicativo da experiência e/ou conhecimento desta pessoa.

    Entusiastas sérios, que procuram se esclarecer melhor sobre as práticas ao ar livre, aprendem que alimentação de qualidade são alimentos ‘in natura’, se possível, frescos. Com efeito, não são alimentos ‘já prontos’, como os ‘ultra processados’, que são sempre de baixa qualidade nutricional e contém ingredientes prejudiciais à saúde e ao rendimento físico em campo (2).

    Ao contrário disso, é preocupante que, quando se consulta à internet sobre comida de acampamento, em Inglês ou Português, é notável a indicação de alimentos processados. Alimentos industrializados, repletos de farinha refinada e açúcar branco, proteínas de baixa qualidade, gorduras, conservantes, estabilizantes, glutamato monosódico, gordura vegetal hidrogenada. Salsichas, marshmallow, biscoitos, achocolatados, bolinhos, glucose de milho em barras de cereais e o famigerado ‘macarrão instantâneo (miojo)’, que se transformou na ‘refeição emblemática’ do campista principiante.

    Este mesmo tipo de alimentação, característico daquele velho livro da ‘Dona Benta’ de culinária brasileira de 1940, reflete o modelo de comidas feitas com itens industrializados, vegetais produzidos com pesticidas e proteínas obtidas através do sofrimento animal. Ainda hoje, no século XXI, este tipo de alimentação remete aos modelos primordiais, advindos da Revolução Industrial e da Revolução Verde, às custas de doenças, degradação ambiental e exploração de classes menos favorecidas.

    Desta forma, é um triste contrassenso que praticantes de atividades ao ar livre, supostos amantes da natureza, utilizem alimentos produzidos às custas da destruição de paisagens naturais, recursos hídricos, solos, biodiversidade, que causam graves doenças em pessoas e na fauna silvestre. São fortalecidas assim, grandes indústrias e latifúndios agrários, causadores negligentes de tais impactos sociais e ambientais.

    Irônico. Amantes da natureza incentivam a destruição da natureza e ingerem alimentos causadores de doenças, quando acreditam que estão fortalecendo a própria saúde ao praticarem atividades físicas na natureza. Este tipo de esportista talvez seja a ‘jóia da corôa’, da sindemia global de obesidade, desnutrição e mudanças climáticas.

    Os modelos atuais de produção de alimentos foram responsabilizados por potencializar as epidemias mundiais de obesidade e desnutrição, além de gerar até 30% das emissões de gases do efeito estufa, o que tem causado mudanças climáticas alarmantes em nível planetário. Daí o termo, ‘sindemia’, porque as três pandemias têm o modelo de produção de alimentos, como causa comum e atuam de forma sinérgica, potencializando seus efeitos negativos na saúde ambiental do planeta e nas pessoas, que encontram na alimentação inadequada, a principal causa de mortes prematuras (19%) no mundo (Swinburn et al. 2019) (3).

    Amantes da natureza conscientes praticam excursionismo de mínimo impacto (leave no trace), mas ao consumirem alimentos deste arranjo produtivo industrial, deixam atrás de si, trilhas lastimáveis de pesadas e indeléveis pegadas ecológicas.

    Muitos são, em maior ou menor grau, marionetes do sistema industrial que toma para si recursos naturais do povo, os converte em lucro privado, deixando ao povo o meio ambiente degradado, empobrecido, envenenado, destruído, desequilibrado e destituído de valor econômico em diversos aspectos, fenômeno conhecido com ‘Tragédia do Bem Comum’.

    Pelo contrário, hábitos alimentares dos amantes de atividades outdoor, devem condizer ideologicamente com princípios éticos e conservacionistas, como ter reduzido ou positivo impacto ambiental (pegada ecológica). Devem fortalecer comunidades agroecológicas locais, apoiar arranjos produtivos ecologicamente corretos e socialmente justos.

    Para levantar estas questões e incentivar mudanças de comportamento, através de aspectos técnicos, conservacionistas e éticos, esta reflexão idealiza e apresenta aos esportistas e profissionais preocupados com saúde, interessados com o próprio desempenho físico e com a sustentabilidade das atividades outdoor, uma concepção mais criteriosa de comida mateira, melhor condizente às pessoas conscientes da gravíssima crise ambiental e dos problemas sociais correlatos.

    Idealmente, de acordo com critérios técnicos, a comida mateira deve reunir um conjunto valioso de qualidades, ela deve ser: bastante nutritiva, balanceada, saudável de fato (não ao alimento ultra processado), durável (baixa perecibilidade), leve, portátil, saborosa (de ampla aceitação no grupo), de baixo custo, fácil de fazer (praticidade), rápida no fogo e deve depender de poucos utensílios para a preparação.

    Considerando aspectos práticos, como perecibilidade e transporte de alimentos, alguns itens preferencialmente devem ser adquiridos junto às comunidades tradicionais da região, de onde se pretende iniciar a empreitada. Assim, comunidades agroecológicas e os arranjos produtivos locais de agricultura, pesca e turismo são fortalecidos (4). Procure alimentos provenientes de Sistemas Agroflorestais, orgânicos e certificados, oriundos da região.

    Preocupações éticas e de conservação biológica, dizem respeito a boicotar de todas as formas, alimentos advindos dos sistemas dominantes de produção, os quais se caracterizam por aspectos como: latifúndios agrários de monocultivo, associados a agrotóxicos, perda de solos, contaminação e esgotamento de recursos hídricos, baixíssima biodiversidade e elevada vulnerabilidade às pestes agrícolas, exploração humana, contaminação de agricultores e da fauna silvestre com pesticidas, onerosas operações de transporte, que geram toneladas de emissões de monóxido de carbono na atmosfera e enchem as rodovias com pesados caminhões de carga.

    Como identificar alimentos advindos dos sistemas dominantes de produção no dia a dia? Evite alimento industrializado e reduza ao máximo, itens ultra processados (trash food). Nos mercados, priorize os alimentos orgânicos e/ou oriundos de agricultura familiar, pois estes são melhores para a o meio ambiente e à saúde pública, em segundo lugar, dê preferência aos itens ‘in natura’ e pouco processados, como queijos, pães integrais, grãos integrais, etc (2).

    Se não for possível encontrar ou adquirir tais alimentos, por exemplo por serem mais caros nos mercados, ainda restam alternativas: i) visite as feiras agroecológicas; ii) verifique se há entrega de cestas de alimentos orgânicos através de pedidos pela internet ou telefone; iii) forme um grupo de consumidores interessados, de forma que pessoas se revezem a ir até uma comunidade agrícola, para comprar produtos aos participantes, de acordo com frequência estabelecida no grupo; iv) plante, se você não tem tal habilidade, junte-se a quem tem e cooperem. Agricultura é uma excelente atividade física ao ar livre e de interação com a natureza.

    Neste ponto, talvez o leitor se encontre contrariado, porque de alguma forma, ele acredita que os alimentos orgânicos não são alternativas viáveis, capazes de alimentar a população humana na escala do planeta e que necessariamente são mais caros. Paciência, vamos adentrar um pouco mais em âmbito científico.

    Autor: Alexandre de Almeida

    Biólogo, ornitólogo de campo, com experiência em diversos biomas. Mestre em Ciências Florestais, doutorado em Ecologia Aplicada (USP). Gestor de acampamento e condutor de visitantes.

    http://lattes.cnpq.br/6855811494289062

    _______________ Notas Complementares

    (1) – Além disso, deve-se observar as normas de prevenção de acidentes em atividades outdoor, que incluem reservas à mão, de água e alimentos de boa qualidade, um agasalho, lanterna e calçado apropriado. Não importa qual atividade ou quão distante do acampamento se almeja ir.

    (2) – Há quatro categorias de alimentos, definidas pelo tipo de processo produtivo: i) ‘in natura’ são aqueles que não sofrem nenhum tipo de modificação até o momento de preparo e consumo (leite, ovos, frutas, verduras, carne fresca, mel, raízes; ii) os minimamente processados, são os que sofrem alterações pequenas, como grãos integrais, farinhas integrais, leite pasteurizado, óleos, açúcar não refinado, carnes salgadas ou secas; iii) alimentos processados, são resultantes de preparações culinárias, como queijos, vinhos, cervejas, pães, conservas, chocolates e embutidos artesanais, frutas em caldas, doces ou geleias caseiras e iv) alimentos ultra processados, que são elaborados através de diversas etapas e técnicas de industrialização, como farinha de trigo refinada, açúcar refinado, biscoitos recheados, salgadinhos, macarrão instantâneo, alguns laticínios, derivados de carne, condimentos, pastas e patês, refrigerantes, etc. Em geral, a estes tipos de ‘alimento’ são adicionados conservantes, estabilizantes, corantes, aromatizantes, os quais são grafados com letras minúsculas nos rótulos, para que não sejam lidas facilmente.

    (3) – Além da Sindemia Global, devem ser considerados: Limiares de Extinção de Espécies e Limiares de Surtos de Pragas Agrícolas. Pesticidas – Nosso Futuro Roubado.

    (4) – Por exemplo, vale a pena comprar das comunidades locais, frutas, aipim, pães, goma de beiju (tapioca), couscous de milho, alimentos desidratados (frutas, peixes, carnes, cogumelos), queijos curados (duros), óleos (dendê, coco), doces, nibes de cacau, chás, condimentos, gomo de cana-de-açúcar. Dê preferência a alimentos orgânicos, certificados e de qualidade reconhecida. Experimente antes de decidir colocar o item na mochila.

    Literatura Consultada.

    Swinburn, Boyd & Kraak, Vivica & Allender, Steven & Atkins, Vincent & Baker, Phillip & Bogard, Jessica & Brinsden, Hannah & Calvillo, Alejandro & De Schutter, Olivier & Devarajan, Raji & Ezzati, Majid & Friel, Sharon & Goenka, Shifalika & Hammond, Ross & Hastings, Gerard & Hawkes, Corinna & Herrero, Mario & Hovmand, Peter & Howden, Stuart & Dietz, William. (2019). The Global Syndemic of Obesity, Undernutrition, and Climate Change: The Lancet Commission report. The Lancet. 393. 10.1016/S0140-6736(18)32822-8. The Lancet Commissions. Volume 393, ISSUE 10173, P791-846, February 23, 2019