Pular para o conteúdo

Sua Visão Está Incompleta: Como a Teoria das Cores de Goethe Revela a Verdade Sobre a Percepção

    Amarelo-Vermelho-Azul é uma pintura a óleo sobre tela criada pelo artista russo Wassily Kandinsky em 1925.

    Yellow-Red-Blue (Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Amarelo-Vermelho-Azul)

    Introdução: O Arco-Íris Não é o Fim da História

    Francisco Pontes de Miranda Ferreira¹

    Assista o vídeo

    Desde a escola, aprendemos uma verdade imutável: a cor é luz. Graças a Isaac Newton e seu famoso experimento com o prisma, entendemos que a luz branca do sol contém todas as cores do arco-íris. É uma explicação elegante, mensurável e fundamental para a física. Mas e se essa for apenas metade da história — a metade que ignora o observador?

    Em 1810, Johann Wolfgang von Goethe — sim, o gigante literário de Fausto — publicou sua “Doutrina das Cores”, uma teoria radical que propunha uma missão de resgate humano para a cor. Em um mundo que começava a reduzir a experiência a dados, Goethe argumentou que a cor não é apenas um cálculo físico, mas uma experiência viva, nascida da nossa própria percepção.

    Prepare-se para descobrir as lições mais surpreendentes de uma teoria que, embora “anticientífica”, transformou a arte, antecipou a psicologia moderna e pode mudar para sempre o modo como você vê o mundo.

    1. A Cor Não Nasce Apenas da Luz, Mas da Luta Entre Luz e Escuridão

    O conceito mais chocante de Goethe é que a cor emerge da interação dinâmica entre luz e escuridão. Para ele, a escuridão não era a mera ausência de luz, como ensinava Newton, mas um elemento ativo e poderoso que molda nossa realidade visual. A diferença fundamental nasceu de seus métodos opostos: Newton isolou a luz em um quarto escuro para dissecá-la; Goethe insistia em observar os fenômenos no mundo natural.

    Goethe percebeu que as cores não estavam escondidas na luz, mas surgiam da relação entre luz, escuridão e um meio “turvo”. A ironia suprema é que ele usou o mesmo instrumento de Newton: o prisma. Para Newton, o prisma decompunha a luz. Para Goethe, ele era o meio onde a luz e a escuridão lutavam em suas bordas para criar a cor.

    Sua visão se desdobra assim:

    • Amarelo: Surge quando a luz brilha através de um meio turvo, predominando sobre a escuridão. Pense nos primeiros raios de sol atravessando a névoa.
    • Azul: Aparece quando a escuridão é vista através de um meio iluminado, sobrepondo-se à luz. É por isso que vemos o céu azul — estamos olhando para a escuridão do espaço através da atmosfera iluminada.

    Essa ideia é poderosa porque transforma a cor de uma propriedade física em uma experiência relacional que acontece diante de nossos olhos.

    2. Seus Olhos Não São Receptores Passivos: Eles Criam Cores Ativamente

    Para Goethe, a experiência da cor não acontece “lá fora”, mas também “aqui dentro”. Ele foi um dos primeiros a estudar sistematicamente as “cores fisiológicas” — aquelas que são um produto direto da nossa percepção e do funcionamento do olho.

    O exemplo mais impactante de Goethe foi a imagem residual. Se você olhar fixamente para uma forma vermelha por alguns segundos e depois desviar o olhar para uma parede branca, verá a mesma forma em um tom esverdeado. Seu olho não está apenas recebendo informação; ele está ativamente gerando a cor complementar para buscar o equilíbrio.

    O mesmo ocorre com as sombras coloridas. Dependendo da iluminação — como a luz de uma vela contra a luz do dia —, uma sombra pode parecer azulada. Isso acontece porque nossa percepção da cor depende radicalmente do contexto. Para Goethe, a experiência humana não é um bug no sistema, mas a característica central e inseparável do fenômeno da cor.

    3. As Cores Têm “Personalidades”: A Psicologia por Trás de Cada Tom

    Muito antes da psicologia moderna das cores, Goethe já atribuía qualidades emocionais e simbólicas a cada tom. Ele não via as cores como comprimentos de onda neutros, mas como forças com “personalidades” distintas que afetam nossa alma.

    Ele as dividiu em dois grandes grupos:

    • Cores “Plus” (Ativas): Como o amarelo e o laranja, são associadas ao calor, à energia, à ação e à alegria. Elas se expandem e avançam em direção ao observador.
    • Cores “Minus” (Passivas): Como o azul e o roxo, estão ligadas ao frio, à tranquilidade, à distância e à melancolia. Elas parecem recuar e nos convidam à introspecção.

    Nesse esquema, o vermelho puro representava o equilíbrio supremo entre as forças, simbolizando nobreza e paixão. Isso não é apenas poético; é a base de por que os logotipos de fast-food se apoiam em amarelos e vermelhos estimulantes, enquanto os aplicativos de bem-estar favorecem azuis e roxos calmantes. Goethe nos deu o vocabulário para o que designers e anunciantes agora praticam instintivamente.

    4. Ver é uma Experiência Total, Não Apenas um Cálculo Físico

    A abordagem de Goethe era, em essência, uma forma de “fenomenologia” antes mesmo de o termo ser inventado. Ele acreditava que, para entender um fenômeno, não deveríamos reduzi-lo a números em um laboratório escuro — sua principal crítica a Newton. Em vez disso, deveríamos descrevê-lo como ele é vivido no mundo real.

    É a diferença entre ler a análise química de um vinho (comprimentos de onda, açúcares, ácidos) e realmente prová-lo. Goethe argumentou que a experiência de provar é o verdadeiro fenômeno, não os números que descrevem seus componentes. Sua busca pela experiência direta antecipou o famoso lema do filósofo Edmund Husserl, “retornar às coisas mesmas”.

    A cor é uma experiência que emerge da relação encarnada entre o observador e o mundo, um fenômeno que deve ser descrito rigorosamente como é vivido, não apenas medido.

    Essa abordagem holística valoriza a subjetividade como parte essencial da realidade e antecipou não apenas a fenomenologia, mas também os princípios da psicologia da Gestalt, que mais tarde confirmaria que percebemos o mundo em totalidades, e não em partes isoladas.

    5. A Teoria “Anticientífica” que Inspirou a Arte Moderna

    Rain, Steam and Speed, 1844, Joseph Turner

    Embora a ciência tenha seguido o caminho de Newton, a teoria de Goethe encontrou um terreno fértil e duradouro nas artes. Sua visão deu aos artistas uma linguagem para usar a cor não apenas para representar o mundo, mas para expressar emoções e experiências interiores.

    O pintor inglês J.M.W. Turner foi um dos primeiros a aplicar essa dinâmica. Em obras-primas como “Chuva, Vapor e Velocidade”, ele não pinta um objeto — o trem — mas a violenta colisão entre a modernidade e a natureza. A luz e a escuridão não descrevem a cena; elas são a cena, um turbilhão de emoções em tela, exatamente como Goethe propôs.

    Décadas depois, Wassily Kandinsky, pioneiro da arte abstrata, absorveu diretamente as ideias de Goethe para fundamentar sua busca pelo “espiritual na arte”. Ele usou a classificação de cores “ativas” (amarelo) e “passivas” (azul) como base para suas composições, como visto em obras-primas como “Amarelo-Vermelho-Azul” e “Composição VIII”, onde as cores se tornam os próprios personagens do drama pictórico.

    Conclusão: O Que Você Realmente Vê?

    A grande lição de Goethe não é que a física de Newton estava errada, mas que ela era profundamente incompleta. Enquanto a ciência de Goethe foi superada, suas percepções fenomenológicas e psicológicas foram incrivelmente prescientes. Ele nos lembrou que a cor não é uma propriedade isolada dos objetos, mas uma experiência viva que conecta o mundo físico, a fisiologia de nossos olhos e as profundezas de nossas emoções. Ele revelou uma verdade que a física pura não pode capturar: a realidade não é apenas o que pode ser medido, mas também o que é vivido.

    Da próxima vez que você olhar para um pôr do sol, o que escolherá ver: um espectro de comprimentos de onda ou a dramática interação entre luz e escuridão que fala diretamente à sua alma?


    REFERÊNCIAS

    GOETHE, J. W. von. Doutrina das Cores. São Paulo: Nova Alexandria, 2013.

    HUSSERL, E. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. São Paulo: Ideias e Letras, 2006.

    KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte. São Paulo: Martins Fontes, 2017.

    MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2012.

    TURNER, J.M.W. Rain, Steam, and Speed – The Great Western Railway. 1844. Óleo sobre tela. National Gallery, Londres.

    TURNER, J.M.W. The Fighting Temeraire. 1839. Óleo sobre tela. National Gallery, Londres.

    KANDINSKY, Wassily. Composition VIII. 1923. Óleo sobre tela. Solomon R. Guggenheim Museum, Nova York.

    KANDINSKY, Wassily. Yellow-Red-Blue. 1925. Óleo sobre tela. Musée National d’Art Moderne, Paris.

    [1] Francisco é Doutor em Ciências do Meio Ambiente, Diretor Interinstitucional do Instituto Tecnoarte e Jornalista.